Dep. Merlong Solano apresenta reflexão sobre a questão dos transportes públicos urbanos no Brasil

Teresina experimentou nos últimos dias a reedição de manifestações estudantis questionando o reajuste da tarifa do transporte público coletivo. Em que pese a presença de interesses políticos, alguns deles doutrinariamente anacrônicos, e excessos cometidos, o movimento tem grande repercussão na sociedade por colocar em debate um problema que vem sendo sentido por número crescente de pessoas. Os estudantes ocupam as ruas, mas os pais e mães, que ao fim e ao cabo pagam a conta, vêem as manifestações com a esperança de um refrigério numa das maiores despesas das famílias de baixa renda.
O problema da mobilidade urbana no Brasil é complexo e se manifesta de modo crescente em Teresina, aonde felizmente ainda não chegamos aos níveis de deterioração de metrópoles como Recife e, especialmente, São Paulo. Estudo do IPEA mostra que desde os anos 50 se deu a progressiva queda da qualidade dos sistemas de mobilidade urbana, “com impactos negativos na vida das pessoas e nos custos econômicos e ambientais”. Dados mais recentes confirmam a tendência de longo prazo: nas regiões metropolitanas, entre 1977 e 2005, no que diz respeito às viagens motorizadas “observa-se a queda no uso do transporte público de 68% para 51%, enquanto o uso do automóvel saltou de 32% para 49%”.
O quadro atual está bem definido e pode ser visualizado no dado da Associação Nacional de Transportes Públicos. Nas cidades com população superior a 60.000 habitantes a frota circulante em 2007 era de 20 milhões de veículos, sendo 15,2 milhões de automóveis e utilitários leves. Dos 148 milhões de deslocamentos realizados por dia, nas áreas urbanas, 38% das pessoas se deslocavam a pé, 29% por transporte coletivo, 27% por automóvel, 3% de moto e 3% de bicicleta.
O alto peso dos deslocamentos a pé, somado ao uso das bicicletas e das motos, evidencia grande exclusão social em relação à mobilidade por meio de transportes públicos coletivos.  Do outro lado da pirâmide social, as pessoas buscam a solução do automóvel. Combinadas, estas soluções expressam um modelo de mobilidade socialmente excludente, ambientalmente não sustentável e cada vez mais oneroso em termos dos crescentes tempos de deslocamento e dos acidentes de trânsito.
Do ponto de vista ambiental, o estudo do IPEA mostra que, em 2007, enquanto o transporte público gerou 9,5 milhões de toneladas de CO², o transporte privado gerou 16,3 milhões de toneladas de CO². Em relação ao tempo médio de deslocamento nas regiões metropolitanas o modelo perdeu eficiência, saindo de 37,9 minutos em 1992 para 40,3 minutos em 2008, conforme dados da PNAD/IBGE; que também mostram que o número de pessoas com deslocamento casa-trabalho superior a uma hora cresceu de 15,7% para 19%. A conta do modelo aparece ainda no elevado número de mortes no trânsito: em 1997 foram 35.620 mortes e em 2007 foram 37.407, sendo as deste último ano assim distribuídas conforme a modalidade de transporte: pedestres – 9.657 mortes; motocicletas – 8.118; automóvel – 8.273; outros – 11.359 mortes.
Este é o quadro geral em que se insere o transporte público urbano no Brasil. De um lado os mais pobres, aqueles que têm dificuldade de arcar com o custo da passagem, andando a pé e de bicicleta; no meio, amplos segmentos de classe média recorrendo às motos, a carros usados e carros populares semi-novos e novos; e do outro lado, os segmentos de renda mais elevada buscando o modelo norte-americano de um carro por pessoa. A contradição reside no fato de que os EUA, sendo os detentores da moeda internacional, puderam contar com o resto do mundo para financiar seu modelo de desenvolvimento altamente consumista e ambientalmente predatório. O Brasil não dispõe desta condição e não é conveniente que, nesta matéria, siga o mesmo caminho do grande “irmão” do norte.
Lamentável é constatar que o poder público no Brasil, em seus três níveis, nas últimas décadas, assistiu passivamente à degradação dos sistemas de transportes públicos e ainda incentivou o transporte privado. O estudo do IPEA é taxativo ao afirmar: “a alta dependência do transporte rodoviário associada com a degradação do trânsito vem causando problemas de mobilidade graves para a população, traduzidos no ciclo vicioso de perda de competitividade do transporte público urbano rodoviário em relação ao privado. Estímulos a este último, associados a aumentos de custos e ausência de políticas de priorização do transporte coletivo, acabam gerando perdas de demanda e receitas para os sistemas públicos, impactando a tarifa cobrada, que por sua vez gera mais perda de demanda, retroalimentando o ciclo vicioso.”
Em socorro de sua tese, o IPEA recorre a dados oficiais que mostram: a) as tarifas de ônibus urbanos aumentaram 60% acima da inflação medida pelo INPC desde 1995; b) houve perda produtividade e de demanda pagante nos sistemas de transporte coletivo, isto é, queda do número de passageiros por quilometro rodado; c) o setor foi impactado negativamente por aumento de custo em seus principais insumos. Entre 1999 e 2009, conforme dados do INPC/IBGE, houve variação real dos seguintes insumos: pneu e câmara-de-ar – 23,8%; óleo diesel – 72,5%; veículos – 45,5%. Na série de insumos, apenas os salários dos empregados do setor não apresentaram ganhos reais em relação à inflação.
As gratuidades também afetam as tarifas. Sempre apresentadas pelos autores das leis municipais que as criaram como grande benefício à sociedade, elas na verdade, além de pesar na tarifa ao serem repassadas ao seu valor geral, geram distorção social grave ao recair sobre os usuários mais pobres dos transportes coletivos, os trabalhadores do setor informal que não têm acesso ao vale-transporte e pagam a passagem inteira.  De acordo com os dados da Associação Nacional de Transporte Urbano o impacto das gratuidades nas tarifas é da ordem de 20,8%, sendo 7,8% referente à meia-passagem estudantil e 13% às demais gratuidades.
O modelo brasileiro de mobilidade urbana consagra a exclusão social: quanto mais pobre menos acesso à cidade. Anos atrás, quando assessorava a Associação de Moradores da Vila da Paz, durante o processo de ocupação daquele latifúndio urbano, constatei que boa parte das pessoas lá residentes não conhecia o aeroporto de Teresina. O horizonte das cidades brasileiras é o de São Paulo: tudo que se fez naquela metrópole em termos de vias públicas (avenidas largas, viadutos, túneis, etc.) não resolveu o problema e os paulistas desperdiçam boa parte das suas vidas (e dos nervos) no trânsito.
A hora de enfrentar o problema da mobilidade urbana chegou. Felizmente o governo federal despertou para o problema. No dia 03 de janeiro de 2012 a presidente Dilma sancionou a Lei 12.587, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Trata-se de uma lei abrangente que consagra o objetivo de “contribuir para o acesso universal à cidade”. Dentre suas diretrizes, destaca-se a “prioridade dos modos de transporte não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.
Os problemas principais dos transportes públicos coletivos são o preço alto das tarifas, que afugentam os mais pobres, e a baixa qualidade do serviço, que estimula a busca de soluções individuais por parte dos segmentos de média e alta renda. Nenhuma lei será efetiva se não abrir espaço para o enfrentamento destas questões. É muito bom constatar que a Lei 12.587 possibilita a adoção de subsídios tarifários, ao mesmo tempo em que consagra o amplo controle social sobre a gestão dos sistemas. Na Europa, onde as desigualdades sociais são bem menores do que no Brasil, os sistemas de transporte público contam com amplos subsídios. O IPEA destaca as seguintes cidades e os percentuais dos subsídios no custeio da operação dos sistemas: Amsterdam – 62%; Barcelona – 44%; Berlin – 47%; Bruxelas – 69%; Budapeste – 63%; Londres – 49%; Madrid – 57%; Paris – 61%; Viena – 62%.
A implantação de subsídios não é questão simples. Mas é obvio que é preciso fazer análise de custo benefício entre o incentivo aos transportes coletivos e a realização de pesados investimentos em vias públicas no vão objetivo de viabilizar os transportes individuais, que a experiência de São Paulo mostra ser inócuo e de pesado impacto ambiental. Além disto, o governo federal se quiser fazer a lei virar realidade, terá que prover maior assistência financeira aos municípios. No mínimo, será necessário viabilizar em curto e médio prazo a imunidade tributária dos sistemas de transportes coletivos: ou seja, a isenção de tributos municipais, estaduais e federais sobre o investimento e operação de sistemas de transportes coletivos urbanos.